Declarações de Amor e Ódio dos ciclistas Diante do Inferno do Norte
"Essa corrida é uma porqueria. Você trabalha como um animal, mal tem tempo para fazer xixi, molha sua bermuda, escorrega, cai... Pergunta se voltarei no ano que vem? Claro, é a corrida mais maravilhosa do mundo!"
À primeira vista, pode parecer apenas o desabafo de um iniciante, mas, na verdade, é uma declaração de amor eterno. Esse sentimento resume o espírito da Paris-Roubaix – a prova de um dia mais cruel do calendário –, a corrida mais temida, a mais venerada e envolta em misticismo.
Theo De Rooij desmontou da bicicleta e proferiu uma das descrições mais enfáticas da prova, com uma frase digna de ser esculpida em mármore nas curvas do Velódromo de Roubaix. Neste domingo, o "Inferno do Norte" volta aos palcos com 259 quilômetros de pura tortura e lenda, tendo como favoritos nomes como Mathieu van der Poel, Van Aert e o inesquecível Pogaçar, enquanto os paralelepípedos agem como juízes implacáveis.
Encontro Inusitado com a Igreja
Tudo começou em 1896. Théodore Vienne e Maurice Pérez, dois empresários têxteis de Roubaix, pretendiam promover seu novíssimo velódromo. Para isso, convenceram o jornal Paris-Vélo a criar uma corrida entre a capital e sua cidade.
O alemão Josef Fischer venceu aquela primeira edição, realizada num Domingo de Ressurreição – em plena Semana Santa – situação que quase gerou um boicote eclesiástico. A solução encontrada foi realizar uma missa antes da largada. Por essa razão, por muitos anos, a prova ficou conhecida como “La Pascale”.
Tudo Pela Venda de Jornais
Em 1901, o jornal L’Auto-Vélo assumiu a organização da corrida, sob a liderança de Henri Desgrange, o mesmo homem que, dois anos depois, idealizaria o Tour de France para suplantar a concorrência e aumentar as vendas de jornais. Curiosamente, Desgrange chegou a se inscrever para correr a Paris-Roubaix, mas acabou não largando. Sua ambição era dotar o ciclismo de um certo misticismo, fazendo com que as crônicas publicadas se transformassem em verdadeiras epopeias que prendessem os leitores.
Um Apelido Mais que Merecido
"Adentramos um verdadeiro campo de batalha. Não sobra nem uma árvore. Tudo está devastado. Isto é um inferno!"
Assim descreveu, em 1919, o jornalista Victor Breyer o cenário arrasado pela Primeira Guerra Mundial. A partir daquele ano, o apelido "Inferno do Norte" passou a ser para sempre associado à prova. A corrida foi retomada em meio a crateras, lama, trincheiras e cicatrizes de guerra. Naquele período, dois ex-campeões – Octave Lapize e François Faber – haviam perdido a vida em combate; Faber, inclusive, foi abatido após saltar de alegria ao saber que seria pai.
Quase Despedindo-se dos Paralelepípedos
Nos anos 60, os trechos com paralelepípedos começaram a desaparecer, sendo substituídos por asfaltamento com a justificativa de “melhorar a imagem da região”. Essa mudança colocou o Roubaix em risco: em 1965, apenas 22 quilômetros de pavé permaneciam. Contudo, em 1968, um ex-minerador e ciclista, Jean Stablinski, apresentou aos organizadores o bosque de Arenberg – um antigo caminho de mina repleto de socavões –, e foi amor à primeira vista. “Eu queria um trecho com paralelepípedos, não uma estrada cheia de buracos”, relembram os organizadores. E assim, o trecho se manteve.
Desde então, Arenberg se consagrou como um ícone. Como se costuma dizer: em Arenberg você não vence a Roubaix, mas pode muito bem perder. Trata-se de uma longa reta de três quilômetros, na qual os ciclistas chegam a ultrapassar os 50 km/h. Em uma das últimas edições, foi criada uma espécie de rotatória artificial para reduzir a velocidade. Se Arenberg estiver molhado – como acontecerá neste domingo – é comparado a uma pista de patinação enlameada.
Mãos Marcadas Pelas Batalhas
Os ciclistas preparam suas bicicletas de forma meticulosa, como quem se prepara para a linha de frente: pneus mais largos, com menor pressão para amortecer os impactos, e dupla fita no guidão para evitar que as mãos sangrem com o constante traquete. Engenheiros testaram de tudo – desde sistemas de suspensão a mudanças na geometria das bicicletas – e até se chegou a utilizar bicicletas de ciclocross. A exigência a que o equipamento é submetido na “esteira” de seis milhões de paralelepípedos não tem paralelo no ciclismo.
Os Reis do Inferno
Vencer nesta prova vai além de uma vitória; é quase como uma canonização. Dois nomes se destacam no Olimpo dos vencedores: Roger De Vlaeminck, conhecido como Monsieur Roubaix, e Tom Boonen, ambos com quatro conquistas. A Bélgica lidera o palmarés com 163 vitórias, enquanto a França soma 82 triunfos. A Espanha, por sua vez, continua resistindo; embora nomes como Miquel Poblet e Juan Antonio Flecha já tenham chegado ao pódio, ainda não tiveram a honra de erguer o paralelepípedo.
Paralelepípedos, Estrelas e até Cabras
Cada trecho de paralelepípedo é classificado com até cinco estrelas, de acordo com a sua dureza. Uma rede de voluntários chamada Les Amis de Paris-Roubaix cuida desses trechos ao longo do ano – e, curiosamente, até cabras são empregadas para desbastar a vegetação, lembrando jardineiros medievais. Esses segmentos são protegidos como patrimônio cultural; vale notar que alguns paralelepípedos pesam mais de cinco quilos e, por vezes, são roubados. Os trechos costumam levar o nome da localidade mais próxima ou da região por onde passam, mas há também aqueles que homenageiam ciclistas que triunfaram na prova.
O Ritual Pós-Prova e o Troféu Singular
Ao cruzar a linha de chegada, o ritual dos vencedores é sagrado. Os chuveiros do Velódromo de Roubaix, que permanecem intactos há décadas, possuem placas comemorativas em cada cabine destinada ao vencedor – um verdadeiro museu de suor e glória. Os chuveiros mantêm a mesma aparência e funcionalidade dos primórdios do século passado. Para tomar banho, o ciclista precisa puxar uma corrente e aguardar que uma banheira de água morna caia sobre seu corpo. Apenas os campeões têm seu próprio chuveiro com o nome gravado, com o privilégio de utilizá-lo sempre que visitam o Velódromo de Roubaix.
E como prêmio, o vencedor recebe um bloco de paralelepípedo de 15 quilos – um troféu que pesa não apenas nas mãos, mas também na memória. Réplicas em escala reduzida são vendidas no bar do velódromo por pouco mais de 20 euros, mas o original é destinado somente àquele que conquista o Inferno do Norte. Jamais uma simples pedra teve tanto valor em uma sala de troféus.