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A Histórica Primeira Conquista do Alpe d’Huez: Quando Fausto Coppi Inaugurou a Lenda em 1952

Descubra a história fascinante de como Fausto Coppi inaugurou a lenda do Alpe d’Huez em 1952, na primeira subida ao topo da história do Tour de France. Uma jornada épica que transformou uma montanha em ícone do ciclismo mundial.

A Histórica Primeira Conquista do Alpe d'Huez

Era uma tarde escaldante de verão nos Alpes franceses. O dia 4 de julho de 1952 entraria para a história do ciclismo mundial como o momento em que uma montanha se transformou em lenda. Naquele dia memorável, o Tour de France experimentava algo revolucionário: pela primeira vez em suas quase cinco décadas de existência, uma etapa terminaria no topo de uma montanha.

O Palco Estava Armado para Fazer História

Quando o pelotão partiu de Lausanne, na Suíça, nas primeiras horas daquela manhã, poucos imaginavam o espetáculo que estava por vir. A etapa de 266 quilômetros seria um verdadeiro teste de resistência, com a maior parte do percurso desenrolando-se em terreno relativamente plano – uma calmaria antes da tempestade que aguardava os corredores.

Durante horas, o pelotão avançou sob um sol implacável. Os ciclistas paravam em fontes para encher suas garrafas e agradeciam cada mangueira que espectadores solidários estendiam sobre a estrada. O calor era sufocante, e a corrida seguia em ritmo controlado. Todos sabiam: o verdadeiro espetáculo só começaria nos últimos 14 quilômetros, quando as rodas começassem a subir em direção à estação de esqui de Alpe d’Huez.

A Inovação que Mudaria o Ciclismo Para Sempre

A edição de 1952 do Tour marcava uma virada histórica no esporte. Os organizadores Jacques Goddet e Félix Lévitan haviam decidido experimentar algo ousado: três chegadas no topo de montanhas – Alpe d’Huez seria a primeira, seguida por Sestrières e Puy de Dôme. Era uma tentativa de adicionar mais drama à competição, transformando as montanhas de simples obstáculos em verdadeiros palcos de batalha.

Outro elemento revolucionário tornava aquele Tour ainda mais especial: pela primeira vez na história, câmeras de televisão montadas em motocicletas seguiriam os corredores. O mundo não apenas leria sobre a corrida nos jornais do dia seguinte – poderia testemunhá-la em tempo real, vendo cada pedalada, cada gota de suor, cada expressão de sofrimento estampada nos rostos dos atletas.

Os 21 Lacets: A Escada Para o Céu

À medida que o pelotão se aproximava da pequena cidade de Bourg d’Oisans, a tensão no ar era palpável. Diante dos ciclistas erguia-se o desafio: uma estrada sinuosa de 13,8 quilômetros que se contorcia através de 21 curvas em forma de grampo, subindo 1.071 metros com uma inclinação média de 8,1% – alcançando picos brutais de 13% em suas seções mais cruéis.

A estrada não era pavimentada como conhecemos hoje. Era uma via rústica, empoeirada, que servia principalmente como acesso à modesta estação de esqui no topo. Apenas três hotéis existiam lá em cima, uma realidade distante do complexo turístico que se tornaria nas décadas seguintes.

Jean Robic Acende o Pavio

Foi Jean Robic, o tenaz ciclista francês apelidado de “cabeça de couro” por usar frequentemente capacete, quem lançou o primeiro ataque. O vencedor do Tour de 1947 explodiu nos primeiros lacets, suas pernas pequenas mas poderosas impulsionando-o montanha acima. Raphaël Géminiani, seu companheiro de equipe francesa, também tentou fugir, mas sem conseguir abrir vantagem significativa.

O contraste visual entre Robic e seu perseguidor era marcante. O francês pedalava curvado sobre o guidão, os músculos tensos, o rosto contorcido pelo esforço. Cada pedalada parecia arrancada das profundezas de sua determinação. Mas atrás dele vinha algo diferente – uma figura que parecia desafiar as próprias leis da gravidade.

Coppi: O Extraterrestre Sobre Duas Rodas

Fausto Coppi subia a montanha como se estivesse fazendo um passeio dominical. Esbelto, elegante, seus movimentos eram de uma fluidez que beirava o sobrenatural. Raphaël Géminiani, que mais tarde descreveria aquele momento, diria que Coppi parecia “um marciano sobre uma bicicleta”.

O italiano havia chegado ao Tour como grande favorito. Acabara de vencer o Giro d’Italia com mais de nove minutos de vantagem, consolidando sua reputação como o mais completo ciclista de sua geração. Mas naquele momento, seguindo a roda de Robic, Coppi apenas esperava. Ele sabia que seu momento estava chegando.

A seis quilômetros do topo, Coppi decidiu que era hora. Sem aviso prévio, sem dramaticidade desnecessária, ele simplesmente acelerou. Foi como se tivesse acionado um motor secreto. Robic, que vinha lutando com todas as forças para manter o ritmo, de repente viu o italiano se distanciar com uma facilidade desconcertante.

Anos depois, Coppi descreveria aquele momento com simplicidade característica: “Eu sabia que ele não estava mais lá quando não conseguia mais ouvir sua respiração ou o som de seus pneus na estrada atrás de mim.”

Uma Ascensão Solitária Rumo à Glória

Coppi prosseguiu sozinho, suas pedaladas suaves e econômicas comendo metros e mais metros de asfalto. Olhou para trás uma vez, duas vezes – Robic estava derrotado, sua cabeça começando a baixar, não mais olhando para o topo da montanha mas para trás, temendo quem mais poderia alcançá-lo.

O público espalhado pela estrada era esparso comparado às multidões que viriam a conhecer o Alpe d’Huez nas décadas seguintes. Pequenos grupos de espectadores se aglomeravam nas curvas, torcendo, jogando água nos ciclistas. Um espectador sem camisa chegou a jogar uma xícara de água em Coppi, fazendo-o desviar brevemente o olhar para a esquerda antes de retomar seu foco inabalável.

Quando Coppi cruzou a linha de chegada no topo do Alpe d’Huez, havia percorrido a subida em 45 minutos e 22 segundos – um tempo que permaneceria como recorde até 1989. Atrás dele, Robic chegaria 1 minuto e 20 segundos depois, completamente esgotado mas com a honra de ter sido o único capaz de acompanhar o “Campionissimo” mesmo que por alguns quilômetros.

Muito Mais que uma Vitória de Etapa

Aquela vitória no Alpe d’Huez fez muito mais do que dar a Coppi a etapa. Ele arrancou a camisa amarela de seu companheiro de equipe Andrea Carrea e nunca mais a devolveria. Coppi dominaria o restante daquela edição do Tour de forma tão absoluta que os organizadores tiveram que dobrar os prêmios para as posições inferiores apenas para manter o interesse dos outros corredores.

Ao final, Coppi venceria o Tour com uma margem esmagadora de 28 minutos e 27 segundos sobre o segundo colocado. Tal domínio nunca mais seria visto na história da Grande Boucle. Naquele ano, Coppi se tornaria também o primeiro ciclista a conquistar tanto o Giro d’Italia quanto o Tour de France na mesma temporada.

O Experimento que (Quase) Falhou

Ironicamente, a primeira incursão do Tour ao Alpe d’Huez não foi considerada um sucesso imediato. Jacques Goddet, o diretor da corrida, ficou decepcionado com o fato de que praticamente nada acontecera durante os primeiros 250 quilômetros da etapa. Ele escreveu que “não havia razão para pressionar por mais chegadas no topo” das montanhas.

Como resultado dessa avaliação, o Alpe d’Huez desapareceria do roteiro do Tour. Não por um ano ou dois, mas por impressionantes 24 anos. Somente em 1976 a montanha retornaria à Grande Boucle, e dessa vez para ficar.

O Nascimento de Uma Lenda

O veterano jornalista Jacques Augendre mais tarde explicaria a importância daquele dia de julho de 1952: “O Tourmalet, o Galibier e o Izoard eram as montanhas míticas da corrida. Esses três cols foram suplantados pelo Alpe d’Huez. Por quê? Porque é o col da modernidade. A vitória de Coppi em 1952 foi o símbolo de uma era dourada do ciclismo.”

E ele estava certo. Quando o Alpe d’Huez retornou em 1976, a magia estava ali. Joop Zoetemelk e Lucien van Impe travaram uma batalha épica que estabeleceu a montanha como um dos palcos definitivos do Tour de France.

Desde então, o Alpe d’Huez apareceu em dezenas de edições do Tour, acumulando histórias lendárias. Os holandeses venceram tantas vezes que a montanha ganhou o apelido de “Montanha Holandesa”, e a curva número 7 tornou-se famosa como o “Dutch Corner”, onde milhares de fãs laranja criam uma atmosfera de festa inesquecível.

O Legado de Coppi

Cada uma das 21 curvas em hairpin do Alpe d’Huez hoje leva o nome de um vencedor de etapa. A curva 21, na base da subida, pertence a Fausto Coppi – uma homenagem apropriada ao homem que inaugurou a lenda.

Aquele Tour de 1952 seria o último de Coppi. Ele nunca mais retornaria à Grande Boucle, preferindo focar em corridas italianas. Mas sua marca estava feita de forma indelével. Ele demonstrara não apenas como subir uma montanha, mas como transformá-la em arte.

O legado de Fausto Coppi vai muito além daquela tarde de julho. Apelidado de “Il Campionissimo” – o campeão dos campeões – ele venceu o Giro d’Italia cinco vezes, o Tour de France duas vezes, e inúmeras clássicas de um dia. Estabeleceu o recorde da hora em 1942. Era um campeão completo: excelente escalador, cronometrista devastador e até mesmo um bom sprinter quando necessário.

A Modernidade Chega às Montanhas

O que tornou aquela primeira subida do Alpe d’Huez tão especial não foi apenas a performance de Coppi, mas a combinação única de fatores que convergiram naquele momento. A televisão estava presente, capturando imagens que circulariam o mundo. Uma nova era estava começando – era onde as montanhas não eram apenas atravessadas, mas conquistadas; onde os desfechos dramáticos aconteceriam não em chegadas planas de sprint, mas em finais extenuantes no topo do mundo.

Hoje, o Alpe d’Huez é uma Meca do ciclismo. Milhares de ciclistas do mundo inteiro viajam para escalar seus 21 lacets a cada ano. A estrada agora é perfeitamente pavimentada, com sinais indicando cada curva, a altitude e a inclinação. Onde antes havia três hotéis modestos, agora existe uma estação de esqui completa.

Mas a essência permanece. Cada pedalada naquela estrada é uma conexão com a história. Cada curva lembra os gigantes que passaram ali antes. E tudo começou com um italiano elegante que fez parecer fácil o impossível naquela tarde escaldante de 1952.

Uma Montanha, Infinitas Histórias

Desde aquele dia histórico, o Alpe d’Huez testemunhou momentos inesquecíveis. Marco Pantani estabeleceu o recorde de velocidade em 1995, subindo em apenas 36 minutos e 40 segundos – embora seu feito esteja para sempre manchado por escândalos de doping. Lance Armstrong teve seu nome removido da curva 21, substituindo Coppi, apenas para ser posteriormente desqualificado.

Em 2018, Geraint Thomas se tornou o primeiro ciclista a vencer uma etapa no Alpe d’Huez enquanto vestia a camisa amarela, indo direto para conquistar seu primeiro título do Tour. Em 2013, numa das edições mais memoráveis, os ciclistas tiveram que subir o Alpe d’Huez duas vezes no mesmo dia – um teste brutal que apenas os mais fortes superaram.

Cada uma dessas histórias se conecta de volta àquele dia em 1952. Cada batalha travada naquelas curvas é um eco da primeira. Quando os fãs se aglomeram aos milhares nas laterais da estrada, quando as equipes planejam suas táticas para a montanha, quando os jovens ciclistas sonham em deixar sua marca no Alpe d’Huez – todos estão, de alguma forma, prestando homenagem a Fausto Coppi e sua ascensão pioneira.

O Espírito do Alpe d’Huez

O que faz do Alpe d’Huez tão especial entre todas as subidas míticas do Tour de France? Não é a mais longa – o Col du Galibier e o Col de l’Iseran são mais extensos. Não é a mais íngreme – há muitas subidas nos Alpes e Pirineus com gradientes mais brutais. Mas há algo no Alpe d’Huez que captura a imaginação como nenhuma outra.

Talvez sejam as 21 curvas, cada uma um marco psicológico na jornada para o topo. Talvez seja a atmosfera única, com centenas de milhares de fãs transformando a montanha em uma gigantesca festa. Talvez seja simplesmente o peso da história – o conhecimento de que cada pedalada ali é dada no mesmo asfalto onde Coppi, Pantani, Hinault e tantos outros escreveram suas lendas.

O Alpe d’Huez é mais do que uma montanha. É um símbolo. É o lugar onde sonhos se realizam e corações se partem. É onde os fracos são expostos e os fortes consagrados. É onde a história do ciclismo é escrita, revisitada e reverenciada.

E tudo começou com Fausto Coppi, pedalando com aquela elegância sobrenatural, transformando uma estrada de montanha empoeirada na catedral do ciclismo. Naquele dia de julho de 1952, ele não apenas venceu uma etapa – ele criou uma lenda que viverá para sempre.

Last modified: 25 de outubro de 2025

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